Sunday, October 23, 2005

imperfeição, livro a.c.,cap. 1

cerra-me esse punho, mostra-me a tua força
sê verdadeiro e incisivo, troca os rodeios e os floreios, e os ''alegres'' devaneios, e os vagos eufemismos por tangíveis puros e duros, reais e comprovados.
sai do casulo da ilusão, onde se te atrofia a confiança! liberta-te, sente o pleno da tua existência -- olhos abertos, mãos á obra, alta a consciência!
larga as doutrinas e teorizações, agarra-te ás cruas verdades e ás grandes realidades, dispensa as regras, cria e vive pelas tuas, desprende-te da forma, exalta o conteúdo!

absorve toda a luz, não te escondas numa sombra...

ser(mão)

as tuas mãos permanecerão um mistério.
um território lamacento onde um dia tentei semear amor, em vão. colhi apenas indiferença disfarçada de falta de tempo, qual planta hibridizada. colhi pena disfarçada de amizade --uma colheita geneticamente modificada...
as tuas mãos assim permanecerão, misteriosas.
como um espelho sem reflexo (que não tem como dar, ou antes receber?), como um animal sem instinto (preso ao passado que já foi e não mais volta a ser), como no fundo, elas próprias são: das palavras são ''talvez'', nem o ''sim'' nem ''não''...

Sunday, October 16, 2005

no sétimo ano

no sétimo ano os dias corriam devagar. havia tempo para qualquer coisa que passasse pela cabeça antigravítica dos alunos da eléctica e arquitectonicamente deliciosamente retro escola da galiza.

lá, o amarelo legislava, qual metáfora representativa do misto de alegria e desenfreada procura que temperavam aquele prato de sabor refinado também conhecido simplesmente por ''galiza'' -- os telhados amarelos e planos com textura de contentor, faziam um desnível de pavilhão para pavilhão que lhes conferia um tom funcional e modernista, com utilidades tão diversas com atractor de bolas e, claro está, plataforma de escape das aulas de EV (bastava sair pela janela, e dar uma volta ao pavilhão pelo telhado, quiçá um tour de inspiração para potenciais desenhos e pinturas). haviam também as grades amarelas: essas barreiras quase intransponíveis, sendo o nosso derradeiro objectivo a livre circulação, sem dar satisfações ás personagens de livros fantásticos que eram os porteiros --o sr. david que perdeu um dedo na alemanha, e o alcobia, dono de um cabelo poderosamente parafnado a qualquer hora do dia. uma revolução era arquitectada todos os dias nas nossas mentes. cada vez que a tentávamos por em prática eramos totalmente esmagados pelo despotismo da directora, a grande e temível amália. restáva-nos então a alternativa de falsificar assinaturas dos E.E., que embora fosse superficial e não levasse a uma mudança de raiz no sistema, era só por si um processo perigoso e excitante que acabava por saciar a sede de mudança (ou talvez só de rebeldia... ou de liberdade? não interessa, naqueles tempos todos estes sentimentos se fundiam num só -- o "amarelo")

as aulas eram como um circo metamorfoseado, no qual os alunos ora encarnavam o papel de animais selvagens, ora o de espectadores eufóricos a fazer pouco dos palhaços -- os professores. a banda sonora era um constante burburinho, com os tempos marcados pelas pancadas nas mesas, enfatizado pelo som de papeis amahucados e esvoaçantes, magistralmente rematado pela voz esganiçada de uma qualquer pobre professora. o toque funcionava como uma espécie de libertação espiritual em versão ''terapia de choque'', qual grito do ipiranga. a última coisa que ouvíamos antes de desaparecermos rumo ao espaço (também conhecido como recreio) era um grito quase sumido entre os ruídos de cadeiras a arrastar, que dizia : ''não saiam pelas janelas!!!''

os intervalos passavam-se a cantar faixas de rock dos early nineties, cujas letras pareciam a expressão perfeita das lutas interiores da adolescência. vinham misturadas com referências a vivências, lugares e palavras que desconhecíamos, mas que ainda tornavam aquelas cançoes mais intangíveis e excitantes. nos intervalos planeava-se a próxima festa das 6 ás 11, discutiam-se problemas tão sérios como racismo, faziam-se reuniões quase maçónicas para determinar o que é o bom e o mau, havia tímidos e desajeitados pedidos de namoro, escontravam-se os primeiros vestígios de conversas verdadeiramente filosóficas. Havia sobertudo emoção, tão forte, tão verdadeira e tão cegamente ingénua, que não era raro derramarem-se lágrimas aquando das confissões de amor e traição, das discussões sobre as notícias mais chocantes do telejornal, dos desabafos sobre problemas familiares.

no fim do ''amarelo'' e surrealista dia de aulas, ao portão da escola, acontecia uma triagem minunciosa que defenia diversos grupos de adolescentes suados e sujos, percorrendo cada qual um diferente longo e aventureiro caminho para casa. uns rumavam a este, outros a sul, mas na realidade todos rumavam á descoberta de um futuro assustadoramente incógnito, tantas vezes imaginado e nenhuma vez vislumbrado. naquele caminho alimentavam-se amizades (já que morar no mesmo bairro era uma boa base comum), trocavam-se confidências, saltava-se poças em dias de chuva, pisavam-se poças em dias de chuva, havia gargalhadas nervosas e gritinhos esganiçados.

no fim-de-semana, esse semi-holograma de felicidade inalcançável, ia-se passar manhãs ou tardes na praia da poça, comia-se gelados e disfrutava-se o melhor que aquela lingua tosca de areia coroada pelo paredão, qual paradoxo entre urbanismo e natureza (ou se calhar a união conceptual entre os dois, para quem me entende) tinha para oferecer. era garantido que lá estava pelo menos um terço da turma, de modo que havia sempre espaço e tempo para fofocas frívolas entre as raparigas e algumas palavras aleatórias sobre bodyboard ou futebol para os rapazes. á noite (que é como quem diz fim da tarde), quando era dia de festa, reunia-se a turma em casa de um qualquer elemento aniversariante. meninas para um lado, rapazes para o outro, ouvia-se uma ou outra piada insegura que não quebravam o gelo, e assim se continuava até á mística hora em que se ligava a aparelhagem e, com o volume no máximo, agitávamos a cabeça (não tanto os deslavados e franzinos corpos!) ao som de faixas que giravam essencialmente á volta de dois épicos álbuns que, pleonasmicamente, nos tatuaram eternamente. ''smash'', dos offspring e ''dookie'' dos green day. sem dúvida. cabelos voavam, vozas entoavam as letras em uníssono, a espontaneidade reinava naquelas horas em que a música quebrava todo o gelo e instalava, sem tréguas, uma atmosfera de qualidade tão sublime que é aqui vã toda e qualquer tentativa de a descrever. também haviam os slows a colmatar a carência de contacto físico, as revelações de paixões escondidas e segredos antigos. ás onze, a campainha tocava, buzinas soavam lá fora. até para a semana.

no sétimo ano o tempo não era barreira, os desgostos de amor eram dados adquiridos, os amores platónicos idem. no sétimo ano dançava-se, cantava-se, jogava-se. tudo em tons de amarelo.

Thursday, October 06, 2005

a minha casa

a minha casa
não tem quatro paredes
também não é rasa
e nas janelas não tem redes

a minha casa
não é em nenhuma nação
e quando a maré vaza
começa a diversão

a minha casa é azul e verde, e ás vezes transparente!
a minha casa é o oceano, sê-lo-á eternamente!


som: the surfers - never
quote of the day : ''when you're paddling for that wave, you're thinking : «i'm gonna die!» ...most times you don't -- well, maybe you die a little'' Gerry Lopez, referindo-se á onda de pipeline, em banzai, na north shore de Oahu