no sétimo ano
no sétimo ano os dias corriam devagar. havia tempo para qualquer coisa que passasse pela cabeça antigravítica dos alunos da eléctica e arquitectonicamente deliciosamente retro escola da galiza.lá, o amarelo legislava, qual metáfora representativa do misto de alegria e desenfreada procura que temperavam aquele prato de sabor refinado também conhecido simplesmente por ''galiza'' -- os telhados amarelos e planos com textura de contentor, faziam um desnível de pavilhão para pavilhão que lhes conferia um tom funcional e modernista, com utilidades tão diversas com atractor de bolas e, claro está, plataforma de escape das aulas de EV (bastava sair pela janela, e dar uma volta ao pavilhão pelo telhado, quiçá um tour de inspiração para potenciais desenhos e pinturas). haviam também as grades amarelas: essas barreiras quase intransponíveis, sendo o nosso derradeiro objectivo a livre circulação, sem dar satisfações ás personagens de livros fantásticos que eram os porteiros --o sr. david que perdeu um dedo na alemanha, e o alcobia, dono de um cabelo poderosamente parafnado a qualquer hora do dia. uma revolução era arquitectada todos os dias nas nossas mentes. cada vez que a tentávamos por em prática eramos totalmente esmagados pelo despotismo da directora, a grande e temível amália. restáva-nos então a alternativa de falsificar assinaturas dos E.E., que embora fosse superficial e não levasse a uma mudança de raiz no sistema, era só por si um processo perigoso e excitante que acabava por saciar a sede de mudança (ou talvez só de rebeldia... ou de liberdade? não interessa, naqueles tempos todos estes sentimentos se fundiam num só -- o "amarelo")
as aulas eram como um circo metamorfoseado, no qual os alunos ora encarnavam o papel de animais selvagens, ora o de espectadores eufóricos a fazer pouco dos palhaços -- os professores. a banda sonora era um constante burburinho, com os tempos marcados pelas pancadas nas mesas, enfatizado pelo som de papeis amahucados e esvoaçantes, magistralmente rematado pela voz esganiçada de uma qualquer pobre professora. o toque funcionava como uma espécie de libertação espiritual em versão ''terapia de choque'', qual grito do ipiranga. a última coisa que ouvíamos antes de desaparecermos rumo ao espaço (também conhecido como recreio) era um grito quase sumido entre os ruídos de cadeiras a arrastar, que dizia : ''não saiam pelas janelas!!!''
os intervalos passavam-se a cantar faixas de rock dos early nineties, cujas letras pareciam a expressão perfeita das lutas interiores da adolescência. vinham misturadas com referências a vivências, lugares e palavras que desconhecíamos, mas que ainda tornavam aquelas cançoes mais intangíveis e excitantes. nos intervalos planeava-se a próxima festa das 6 ás 11, discutiam-se problemas tão sérios como racismo, faziam-se reuniões quase maçónicas para determinar o que é o bom e o mau, havia tímidos e desajeitados pedidos de namoro, escontravam-se os primeiros vestígios de conversas verdadeiramente filosóficas. Havia sobertudo emoção, tão forte, tão verdadeira e tão cegamente ingénua, que não era raro derramarem-se lágrimas aquando das confissões de amor e traição, das discussões sobre as notícias mais chocantes do telejornal, dos desabafos sobre problemas familiares.
no fim do ''amarelo'' e surrealista dia de aulas, ao portão da escola, acontecia uma triagem minunciosa que defenia diversos grupos de adolescentes suados e sujos, percorrendo cada qual um diferente longo e aventureiro caminho para casa. uns rumavam a este, outros a sul, mas na realidade todos rumavam á descoberta de um futuro assustadoramente incógnito, tantas vezes imaginado e nenhuma vez vislumbrado. naquele caminho alimentavam-se amizades (já que morar no mesmo bairro era uma boa base comum), trocavam-se confidências, saltava-se poças em dias de chuva, pisavam-se poças em dias de chuva, havia gargalhadas nervosas e gritinhos esganiçados.
no fim-de-semana, esse semi-holograma de felicidade inalcançável, ia-se passar manhãs ou tardes na praia da poça, comia-se gelados e disfrutava-se o melhor que aquela lingua tosca de areia coroada pelo paredão, qual paradoxo entre urbanismo e natureza (ou se calhar a união conceptual entre os dois, para quem me entende) tinha para oferecer. era garantido que lá estava pelo menos um terço da turma, de modo que havia sempre espaço e tempo para fofocas frívolas entre as raparigas e algumas palavras aleatórias sobre bodyboard ou futebol para os rapazes. á noite (que é como quem diz fim da tarde), quando era dia de festa, reunia-se a turma em casa de um qualquer elemento aniversariante. meninas para um lado, rapazes para o outro, ouvia-se uma ou outra piada insegura que não quebravam o gelo, e assim se continuava até á mística hora em que se ligava a aparelhagem e, com o volume no máximo, agitávamos a cabeça (não tanto os deslavados e franzinos corpos!) ao som de faixas que giravam essencialmente á volta de dois épicos álbuns que, pleonasmicamente, nos tatuaram eternamente. ''smash'', dos offspring e ''dookie'' dos green day. sem dúvida. cabelos voavam, vozas entoavam as letras em uníssono, a espontaneidade reinava naquelas horas em que a música quebrava todo o gelo e instalava, sem tréguas, uma atmosfera de qualidade tão sublime que é aqui vã toda e qualquer tentativa de a descrever. também haviam os slows a colmatar a carência de contacto físico, as revelações de paixões escondidas e segredos antigos. ás onze, a campainha tocava, buzinas soavam lá fora. até para a semana.
no sétimo ano o tempo não era barreira, os desgostos de amor eram dados adquiridos, os amores platónicos idem. no sétimo ano dançava-se, cantava-se, jogava-se. tudo em tons de amarelo.
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